quinta-feira, 10 de agosto de 2023

QUAL O VALOR DA CRIAÇÃO?

Será mesmo que o trabalho da criação audiovisual se encerra na folha de papel?


Um dia alguém escreveu uma banana, mas no processo, alguém achou que deveria ser maçã, uva, laranja e no fim das contas, o que estamos vendo na tela é um abacaxi. Bem azedo. Produtos mal resolvidos, equivocados, confusos. Os Frankenstein nossos de cada dia. A essência se perde e o resultado fica aquém. Se é frustrante pro público, imagina para quem criou a coisa e dormiu com ela noites a fio!


Temos acompanhado as greves do sindicato americano de roteiristas justamente pela devida valorização do trabalho da autoria-criadora. E vejam que lá, uma das indústrias mais consolidadas do mundo, autores tem bem mais voz e são contemplados como produtores executivos de suas séries. E mesmo assim, estão reivindicando melhores condições de trabalho e remuneração.


O Brasil adentrou o mercado da narrativa seriada usando o modelo importado do cinema autoral, em que a direção geral é a voz máxima dentro de um projeto audiovisual. Acontece que, na grande maioria das vezes, essa direção entra depois que a série está criada, construída e escrita. Na teledramaturgia brasileira, a pessoa que criou, a pessoa que assina a autoria da novela, é a autoridade máxima da concepção artística. É dela que vem as diretrizes para direção, elenco, arte e o que mais abrange a criação. Obviamente que o diálogo entre entre as partes é uma via de mão dupla e as trocas são necessárias e agregadoras, mas quem segue sendo a guardiã unificadora da criação, até a novela sair do ar, é quem criou a coisa. Você pode até não gostar de novela, mas não pode negar que é um produto sólido que, em grande maioria, não se perde na unicidade de sua essência.


Já as narrativas seriadas não tem esse privilégio. O mercado trata os criadores como simples operários à serviço do papel. Roteiros são tachados de meros guias que deixam de existir uma vez que são filmados. A concepção artística dos criadores não é levada em consideração, existe pouca abertura para o diálogo e a unidade criativa vai se esvaindo a cada nova etapa de produção. Criadores não são contemplados na conversa após o desenvolvimento, raramente estão nos sets de filmagem e, quando muito, são chamadas à ilha de edição para ver o resultado de algo que não poderão opinar. Produtores opinam, executivos de canais opinam, executivos de marketing opinam, diretores, montadores e chefes de equipe opinam, até o elenco opina. Mas a pessoa que criou, escreveu, passou meses gestando a história, os personagens, o universo, criando, dando vida àquela obra, é a primeira peça a ser descartada no processo. E a mais frágil também. Ou porque teve que vender sua alma para seguir pagando seus boletos e não está com saúde pra lutar por seu devido espaço. Ou porque tem medo de ser queimada no mercado como uma pessoa "difícil". Ou porque resolveu não lutar contra essa cultura equivocada de empoderar sempre as mesmas pessoas a fazerem as mesmas coisas porque são "as donas do brinquedo".


Ah, mais a pessoa que escreveu não entende de direção, de montagem, de mercado, de marketing, de coisa nenhuma - eles dirão. Além de ser um equívoco imenso, porque sim, cada vez mais os profissionais tem se preparado para o mercado, tem estudado, acumulado experiências e participado, mesmo que sem ganhar nenhum tostão, do processo todo para garantir uma chancela, o papel da pessoa que escreveu não é dirigir, nem montar, nem vender, nem marquetar sua série. A função dela é garantir que sua criação acompanhe uma unidade criativa, que todas as áreas estejam falando a mesma língua e saibam o que essa pessoa estava pensando em dizer, mostrar, quando criou sua obra. Para as outras funções, já temos pessoas bem competentes contratadas.


Há de se pensar se esse modelo que aniquila criadores no processo de produção é saudável, agregador, se ele promove a dita diversidade ou se ele vai atender às expectativas de um público cada vez mais exigente e letrado. Há de se pensar se será possível fazer a roda girar quando criadores se unirem e abandonarem, literalmente, seus papéis para reivindicar mais respeito, mais espaço, mais diálogo, mais participação.


Talvez, nesse dia, quando a coisa toda colapsar e nem o ChatGPT for capaz de contar nossas histórias, o mercado perceba que o roteiro, a criação, não é apenas um guia, mas a alma de todo produto audiovisual.


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